quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O DIA SEGUINTE

* Joaquim Pessoa *


O dia seguinte era sempre um anjo: compreendia que todos o
aguardavam sem dele nada esperar e, torcendo o coração até
ficar azul, tornava-se fresco, líquido, sem ninguém a persegui-
lo.
Lembrava-se o homem de ter voltado cansado, porque o disse
e o viu o cão. No umbral, transformou as mãos e, estendido de
costas na palha foi um peixe, depois sombra branca e leite der-
ramado. Como se estivesse a dormir, tinha a boca aberta; não
soube dizer nada e não disse.
Tudo era diferente no caminho das árvores: o bafo do cão estu-
gava, a alegria era única; alguém, por vezes, sabia conversar.
A língua molhada enroscou-se ao chão, insubornável, com um
longo movimento, esperando o minuto seguinte.
Reconhecer-se-ia a intranquilidade, porque não poderia nunca
explicar-se, pelo que dela se movia e não bastava. No que era
bom se confiava. No que era inútil, a pele não acordava nem ar-
dia.
Leve, assim, o sono prometia. Cedo teria a água de cantar, sem
que a mais lenta palavra se entendesse. A uma outra carta o si-
lêncio respondeu. Quando o vento for útil, dizia-se, alguém te-
rá partido mas só esse saberá, ao certo, o caminho de regresso.


in FLY, Litexa, 1983.
(A reeditar em 2013, em edição especial comemorativa dos 30
anos de publicação, com um estudo de Teresa Sá Couto).

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